As estrelas brilhavam naquela noite. O céu era um espetáculo de luzes.
Um mundo à nossa volta. No colo de Lisa, minha cabeça viajava pelo cosmo. Eu
gostava de ficar deitado sobre suas pernas, olhando para cima e sonhando.
Namorava Lisa há quase um ano. Nunca pensei que nosso namoro fosse durar tanto
tempo. Minhas relações anteriores não passavam de dois meses. Não sabia onde
aquilo tudo iria parar, mas eu estava confortável, tinha satisfeito minha mãe
com as cobranças de uma namorada, mantinha minha referência heterossexual para
a sociedade, evitando comentários desagradáveis e encontrara uma garota que me
amava de verdade. Aos poucos, caí no comodismo.
Conheci Lisa por acaso, quando inventei de produzir meu segundo filme na
cidade. Depois do primeiro, aos 15 anos, do qual saí com Tatieli, e mais um ano
de descanso, era hora de providenciar a nova conquista. Na verdade, minha mãe
incentivava essas ideias na intenção de que eu encontrasse alguma namorada.
Então era quase que obrigatório sair algum namoro desses projetos. Era a
condição para ela gastar tanto com minha imaginação.
Quando decidimos produzir o segundo filme, antes mesmo de escalar o
elenco, ela já se perguntava com quem eu iria ficar daquela vez. E foi assim
que Lisa apareceu. Ela entrou no filme para substituir outra menina que tinha
desistido, e logo se mostrou dedicada e bastante receptiva com o diretor.
Ensaiamos bastante antes de gravar, e quando finalmente chegamos às gravações,
já fazia um mês de namoro. O detalhe importante é que Lisa tinha outro namorado
quando nos conhecemos, e mesmo ela dizendo que o namoro ia mal, eu fui
praticamente o responsável por apressar a separação.
Nessa etapa, eu já conhecia sua mãe, sua irmã e até alguns primos. Lisa
era dois anos mais velha e eu me sentia totalmente inexperiente com ela. Ainda
assim, éramos o casal top da cidade. Todo mundo que passava por nós derramava
elogios. A noite que culminou no nosso primeiro beijo e o início da
relação, aconteceu depois de muita insistência dela. Naquele momento, eu senti
que estava dando mais um passo contra minha natureza, mas era preciso enfrentar
o que tinha provocado. Tentei remediar, apelando para o aparelho ortodôntico,
que estava usando há pouco tempo, e o medo de machucá-la, mas o beijo acabou
acontecendo depois da meia-noite, quando esgotei minhas chances de desculpas e
minha mãe surgiu na esquina preocupada com a demora do filhote.
Agora estávamos ali, quase um ano depois, olhando as estrelas e
planejando o futuro.
- O que você acha de Campbell, Clara e Giulio? – eu perguntei.
Era mais uma conversa sobre o nome dos nossos futuros filhos. Essa tinha
sido uma discussão frequente ao longo daquele ano. Estávamos obcecados por
crianças. Sempre que encontrávamos uma, era aquela babação. Eu já perdera as
contas de quantos nomes haviam passado pela minha lista, de Abel a Zeca. Um
detalhe: eu só escolhia nomes masculinos. De modo que Clara foi sugestão de
Lisa. Talvez a psicologia explique. Assim, depois de um longo percurso,
estávamos finalmente entrando em acordo sobre os nomes dos três rebentos. Sim,
seriam três! Dois meninos e uma menina. Como se pudéssemos escolher.
Essa fixação partiu de mim e acabou a contagiando. Na verdade, acho que
partiu mesmo da minha mãe e me contaminou. Ela sonhava tanto com os netos, que
eu acabei assumindo mais esse sonho seu. Desejei tanto um filho, que esqueci a
etapa anterior a ele, o casamento. Mas Lisa estava ali para me lembrar.
Nossa relação era correta. Toda noite eu ia até sua casa, namorava no
sofá e depois ficava um tempinho nos batentes da calçada. Quando o namoro (que
eu imaginava não passar de dois meses) acabou se firmando, fui embarcando na
ilusão de ser um garoto hétero, de casar, ter filhos e ser uma família feliz.
Cheguei verdadeiramente a acreditar nisso. Apesar de não me sentir atraído
sexualmente, gostava muito de estar com ela, me sentia bem. E o sexo era ainda
uma realidade distante, já que ela seguia a filosofia de sexo somente após o
casamento.
Estávamos presos, amarrados pelos sonhos, mais que isso, éramos
cúmplices, confidentes. Lisa era minha verdadeira companhia, era quem me
apoiava, estava presente quando precisava, quem me amava profundamente. Nos
momentos difíceis, foi em seu colo que chorei, foi aos seus ouvidos que recitei
os melhores planos para nossas vidas, foi nas inúmeras cartas que lhe escrevi
que gravei os sentimentos de numa fase tão conflitante. Não havia como não me
envolver mais. Lisa era parte de mim, era da família. Mas nossos destinos se
mostravam inevitavelmente divergentes. Eu queria que aqueles planos se
tornassem reais algum dia, mas a força contrária dentro de mim relutava. Foi
nesse período que passei a ter uma identificação maior com o Superman, afinal
Clark também escondia um grande segredo dos que amava, e nem por isso deixava
de ser uma boa pessoa. Era ao que me agarrava para não me sentir um crápula
muitas vezes.
Enquanto discutia a pronúncia de Giulio com Lisa, o tempo passava. A
cada dia, a cada mês, a cada ano ia ficando mais difícil manter aquela situação.
A intimidade aumentava, a cobrança e o compromisso cresciam. Não tinha coragem
de romper, me sentia ligado demais, embora soubesse que não teria como
sustentar por muito tempo. A fantasia acabou durando 8 anos e meio. Muito para
uma relação prevista para não dar certo. Mas quem poderia dizer que não daria,
depois de viver tanto tempo aquela farsa que criei lá atrás, quando decidi
viver como hétero ao me descobrir gay? Foi realmente difícil ver o fim da nossa
união, de todos nossos segredos, pizzas, sonhos, aventuras. A mulher mais
experiente parecia mais criança que eu ao fim de tudo. A minha maior
preocupação era ter atrasado sua vida, que ela não conseguisse refazer seus
passos. Mas felizmente ela parece feliz hoje ao lado do seu marido.
Arrependimentos? Sim, muitos! Não pelo que vivemos e partilhamos juntos,
mas pelo que deixamos de viver, pelas histórias mais honestas que poderíamos
ter tido. Lisa me proporcionou muitos momentos de felicidade, mas com certeza
ambos teríamos sido mais felizes com seus pares de verdade. Campbell, Clara e
Giulio nunca chegaram a nascer. Muitas vezes me imaginava olhando para um
futuro filho dela e pensando que aquele garoto poderia ser meu, o nosso
Campbell, mas melhor que não o fosse. Quantos casamentos baseados na mentira
são levados adiante, construídos sob o preconceito, em nome de um conceito de
família que alguém criou e implantou como certo. Não! É hora de acabar esse
ciclo. É chegada a hora de cada um viver sua realidade sem medos e
inseguranças. Gays, héteros, bis, travestis, trans... humanos, crescendo e
vivendo apenas.