fevereiro 27, 2012

Aquela noite no apartamento

Eu estava no quarto estudando ou lendo alguma coisa sobre o colchão. Breno abriu a porta.
- A gente vai trazer uma menina pra comer aqui. Você se importa?
Fazia pouco mais de dois meses que a gente estava dividindo apartamento. Apesar dele ser da minha cidade, eu não o conhecia até ir morar com ele. Minha mãe querendo que eu me preparasse melhor para o vestibular, tratou de providenciar um lugar para mim na capital. O contato com os pais de Breno se mostrou muito propício e logo eu estava escalado para dividir apartamento com ele no ano seguinte. Breno era três anos mais novo que eu, estava no primeiro ano do ensino médio, mas demonstrava uma experiência superior à minha, em muitos aspectos. Até esse dia eu não sabia que o sexo também estava incluído.
- Não.
A minha pequena resposta foi banhada de dúvidas. Eu deveria me opor? Se o fizesse não seria o chato? Que horas sua namorada iria chegar? Passaria a noite? Eu deveria dormir na sala então. Mas espere! Ele não falou namorada, foi a minha ingenuidade que associou, e havia uma outra pessoa na frase. Enfim, o tempo era curto demais para concatenar todas essas ideias e responder. Quando minha mente ainda processava, a resposta já tinha saído.
Em pouco tempo, chegou um amigo dele com outro menino de no máximo 12 anos. O palco era preparado. Quando a campainha soou novamente, era o jantar. Fui convidado a me retirar do quarto. Na sala, davam-se as preliminares. A moça muito espontânea, ria e falava animadíssima conosco, certa que teria uma noite em dose tripla, com direito a sobremesa ainda.
Não demorou muito e o amigo de Breno estava trancado com ela no quarto. Depois só se ouviam os gemidos. Jesus! Nunca tinha escutado aquilo. Tentei manter a aparência de normalidade, enquanto meu coração gay acelerava naquele ninho de héteros. Fui ao banheiro lavar o rosto. Na volta, Breno me convidou para apreciar a desenvoltura do amigo pelo buraco da fechadura. Tentei evitar para não me mostrar muito receptivo àquela situação, mas a curiosidade acabou me levando, e vi com alguma dificuldade, aquele traseiro branco se movimentando no quarto.
Quando abriram a porta, ela saiu agitadíssima enrolada numa toalha e foi à cozinha beber água, enquanto Breno perguntava ao amigo sobre a experiência. Naquela altura, dava para ver nitidamente o volume que se formava em seu short de nylon branco. Mas a minha inocência achava que o show tinha acabado. Só quando a moça resolveu espantar o calor desenrolando a toalha enquanto desfilava pela sala, eu percebi que a noite ainda era um recém-nascido.
Era impressionante a saliência do menino de 12 anos que o amigo de Breno tinha levado. Se ela permitisse, ele conheceria o sexo ali mesmo. Claro que nenhum deles concordava com isso. E eu me perguntava o que ele estava fazendo ali.
Enquanto Breno se preparava para entrar em cena, fiquei sozinho na sala com aquele furacão. Ela sentou ao meu lado, abriu desinibida a toalha, me olhou com um sorriso safado e veio se aninhando para cima de mim. Eu, imediatamente, me afastei e usei a mesma desculpa que havia dado a Breno para não participar da festinha.
- Eu não quero trair minha namorada. Eu gosto muito dela e se ela souber disso aqui, já era.
- Entendo – com a mão na minha coxa.
Felizmente, Breno chegou e a levou para o quarto. O moleque não desgrudava da fechadura. O outro bebia cerveja no balcão da cozinha, relaxado. Imaginei até que horas aquela farra iria? Naquele rodízio, eu ia acabar na berlinda. Impaciente, talvez desesperado definisse melhor, resolvi sair do apartamento. Quando Breno terminou sua reunião, entrei no quarto, peguei o boné e saí.
Fui caminhando em busca de algum lugar onde pudesse passar algumas horas, mas não tinha nenhum em mente. Foi aí que me lembrei da casa de umas colegas do cursinho. Elas tinham me dado o endereço, mas ainda não tinha ido lá. Acabei provocando susto nelas com aquela visita inesperada. Mas depois nos entendemos e conversamos muito ainda. Até elas perceberem que já estava ficando tarde e eu não demonstrava a menor intenção de ir embora. Sem poder falar sobre o bordel que tinha se transformado meu apartamento, me vi na obrigação de ir embora.
Quando retornei ao apê, encontrei Breno, o amigo e o moleque na sala. Que bom! Ela finalmente foi embora. Mas fui impedido de entrar no quarto. Alguém estava trancado lá com a dita. Um terceiro! Depois que forcei o trinco, a porta se abriu e um garoto brincalhão saiu pelado, exibindo seus genitais para que todos parassem de espiar. A moça não gostou e fechou a porta irritada. Uau! E eu nem olhei pro brinquedo com medo de me denunciar.
Logo em seguida, ela foi tomar banho com sua sobremesa. O moleque, inconformado por não ter tido sua chance, se jogou pelado debaixo do chuveiro com ela. Eu só ouvia as gargalhadas a cada eminência dele. Mas finalmente o cabaré encerrou. Os amigos de Breno saíram e a fogosa se despediu, desejando repetir mais vezes. Não sei se ele a pagou, ou se, de repente, ela era somente uma amiga dedicada. Fui pro quarto e troquei o pano do meu colchão. Tinha uma mancha bem no meio dele. Nojo! Breno então se aproximou sondando a minha reação.
- Você ficou chateado?
Eu fui claro que aquela situação não iria mais se repetir. Mas chateado mesmo quem iria ficar era ele com o desenrolar dessa história. Depois de ter meu espaço de volta, eu poderia ter esquecido aquela noite e seguido em frente, mas não foi o que aconteceu. As impressões do que se passou ficaram na minha cabeça por muito tempo. E cada detalhe ganhou uma dimensão inimaginável. Logo vieram os grilos. E se aquela menina tivesse alguma doença? E se Breno tivesse pegado? E se ele me transmitisse ali no convívio? Me sentia traindo a confiança da minha mãe e da minha namorada mesmo, muito embora a grande traição fosse simplesmente namorá-la. Liguei para minha mãe e contei tudo num desabafo. Precisava ouvir dela que eu ia ficar bem. E não satisfeito, mandei uma carta para a namorada e ainda ressaltei que tinha me mantido fiel a ela.
A reação da minha mãe foi cautelosa. Iria falar com os pais de Breno, mas não queria me envolver. Então bolou uma ideia que acabou prejudicando mais gente. Depois de ir nos visitar, ela fingiu para Breno que a lavadeira tinha lhe contado. Na volta, conversou com os pais dele, mas se decepcionou com a naturalidade que eles receberam a informação. Era coisa da idade! E ainda sobrou para mim, o único que não tinha saboreado a morena. A partir daí, ela maquinou secretamente a minha saída do apartamento. Depois de acertar um novo local para eu morar sozinho, pagou o último mês adiantado e comunicou a saída. Naquele dia Breno chorou como um moleque na nossa frente. Sua preocupação era encontrar outro para dividir o apê. E sua reação se somou à raiva, depois de confrontar a lavadeira e descobrir que minha mãe tinha mentido. Eu me comovi com a cena. Mas a coisa estava feita. Uma situação que começou errada e seguiu errando, não poderia chegar ao fim de outra maneira. Breno me odeia por isso tudo até hoje.

fevereiro 21, 2012

A maioridade

Nunca esperei a data de um aniversário com tanta ansiedade quanto os dezoito. A maioridade representava naquele momento o passaporte para um outro mundo. Não era boate, sauna, motel ou qualquer coisa do gênero, mas a possibilidade de aquisição própria de todo o universo erótico, mais especificamente, magazines. Quando a internet ainda não dominava meu dia-a-dia, a única alternativa possível para ver as formas da figura masculina era saborear algumas páginas de revista. Mas aquele conteúdo impróprio para menores só me seria acessível quando eu completasse os dezoito.
Morando há alguns meses na capital e matriculado num cursinho pré-vestibular, a cidade grande parecia me oferecer uma vasta possibilidade de experiência sexual, do tipo que eu nunca tive no interior. Ali eu era um desconhecido, ninguém iria me apontar ou me dedurar para a família, embora não fosse minha intenção sair explorando a minha homossexualidade. Não, eu acreditava realmente que seria possível manter uma vida dupla. Há pouco mais de um ano, eu tinha iniciado um namoro com uma garota da minha cidade, e mesmo com a mudança pra capital, o relacionamento continuou à distância.
Por fora, eu era o rapaz boa-família que namorava uma menina de princípios do interior, mas por dentro, era o garoto dissimulado que se masturbava no banheiro pensando em outros homens. Eu poderia ter rompido esse namoro assim que fui morar fora, mas a vivência hétero era forte demais em minha mente para me permitir tomar essa atitude. Eu sabia que era gay, mas faria o possível para não deixar isso crescer, para não decepcionar minha mãe, para viver sua realidade e lhe garantir os netos que sonhara. Assim, a capital era apenas uma extensão daqueles momentos no banheiro, para logo voltar à fachada hétero nas férias e feriados em casa.
Todavia, na capital eu poderia ampliar um pouquinho mais esse prazer. Foi assim que começou minha fixação em obter alguma revista pornográfica. Seria um bem precioso em minha vida. Até aquela ocasião os únicos pênis que tinha visto, além do meu, eram os de dois atores de revistas eróticas da minha mãe, que vez por outra eu carregava escondido pro banheiro; e o do meu tio, que na época que morei em sua casa não perdia a chance de espiá-lo quando ia se trocar.
Tudo seria mais fácil na cidade grande, se não fosse ainda a condição de menor. Como conseguir comprar uma revista na banca sem ter 18 anos? De repente poderia até encontrar algum vendedor mais interessado no dinheiro do que na minha idade, mas não poderia correr o risco. Ir até uma banca comprar revista pornô já era um constrangimento, imagina então ser barrado por isso. Cogitei até a possibilidade de pedir a alguém que comprasse em meu lugar, mas quem? E se eu pagasse a alguém? É, pararia alguém na rua e pediria para me fazer esse favor. Não, seria embaraçoso! O jeito então era aguardar pacientemente atingir a maioridade. Ela não tardaria a vim, apenas mais alguns meses.
E assim aconteceu! No dia que completei 18 anos, senti que ganhara a independência. Viva! Ninguém mais me impediria. Contudo, alguns grilos ainda cricavam na minha cabeça. Eu não podia ir à banca naquele mesmo dia. Se o cara pedisse minha identidade, veria que tinha completado 18 anos justamente naquele dia. Melhor esperar mais uma semana e ninguém iria achar que eu estava desesperado. Óbvio que não consegui seguir meu raciocínio, e no fim da tarde do mesmo dia, lá estava eu em frente a uma banca, analisando revistas de fofocas enquanto o dono terminava de atender um cliente.
Aquela não era a primeira banca que eu havia ido. Nas anteriores sempre encontrava algum motivo para me fazer desistir de ir adiante. Em uma, o dono parecia carrancudo demais. Em outra, a banca não ficava vazia ou eram duas mulheres e a vergonha era maior. Mas finalmente tinha encontrado a certa. Assim que o cliente saiu, meus olhos correram até a sessão de revistas eróticas na parte superior, e num engasgo, minha voz saiu e perguntou o preço.
- Dois e cinquenta. Pode escolher aí.
Peguei uma que achei interessante, paguei e saí. Ele nem me pediu pra comprovar a idade. Fui um tolo por não ter ido antes comprar. Mas tudo bem. O objeto estava ali em minhas mãos. Não era uma revista gay, era hétero, que seria mais fácil de esconder, e no caso de ser descoberta não iria me comprometer. Coloquei a revista na bermuda, junto ao corpo, para não chamar a atenção do colega com quem dividia apartamento. E ao chegar, fui direto ao banheiro saborear aquelas fotos tão desejadas. Cada detalhe me deixava mais excitado ainda. Comecei o que seria uma série de batidas em sua companhia.
Porém, a satisfação não durou muito tempo, logo decidi que precisava adquirir outra. Mas dessa vez tinha que ser gay. Chegava a me tremer de emoção só de imaginar ver dois caras se beijando e se tocando. E com essa intenção, parti para outra maratona pelas bancas de revista do bairro. Depois de muito procurar, enquanto criava coragem para assumir minha sexualidade por alguns segundos a um estranho, avaliei que não seria tão difícil enfrentar um garoto de seus 14, 15 anos que tomava conta da banca da mãe. Com a revista nas mãos, me aproximei do garoto, pus a revista no balcão e foquei no dinheiro para não ter que encará-lo. Ele olhou a revista, me olhou, conferiu o preço e em seguida me passou o troco. Precisava das minhas pernas para sair, mas naquele momento parece que havia esquecido completamente como andar. Com muito esforço, tomei a direção da saída e senti um funil se abrindo atrás de mim, como se um marcador gigante do Google estivesse sobre minha cabeça anunciando a todo mundo que eu era gay. A sensação não durou muito tempo, assim como a sobrevida da revista que logo se viu picada no lixo. Era o único jeito de manter em segredo aquele mundo. A maioridade tinha chegado, mas era apenas um novo reforço para reafirmar e confrontar uma condição da qual eu não poderia fugir: eu era gay!

fevereiro 19, 2012

Amor calado [parte III] - Vida segue

        Era como se eu estivesse sedado. Sim, era assim que eu me sentia. Como se tivesse recebido uma dose majestosa de benzodiazepínicos. O mundo à minha volta era uma realidade paralela. Eu circulava entre os alunos pelos corredores como um fantasma após um desencarne brusco. Nada me atingia. Meu corpo estava ali, mas minha mente percorria os lugares mais sombrios e distantes de um outro mundo. Só conseguia pensar no que me aconteceria quando me encontrasse com Lisa e com minha mãe. O que diria a elas? Haveria outra explicação que não fosse a verdade? Por que tinha que ter alimentado tanto essa fantasia por Dante?
Ainda mergulhado nesses pensamentos, cheguei à porta da minha sala e entrei. Ali junto aos outros alunos e à nossa exposição estava seguro. Ganhava tempo para raciocinar. O que quer que Lisa e minha mãe tivessem descoberto, não ousariam me interrogar na frente de todos. Mas a ansiedade era visível, e a menor preocupação com a mostra soava irritante aos meus nervos. Tudo era por demasiado insignificante diante da tamanha tempestade que eu estava prestes a enfrentar. E o que eu temia, aconteceu. Elas chegaram à porta, e com um olhar indagador, minha mãe me chamou.
Foram uns passos tão apreensivos. Parece que definitivamente ela teria coragem de me interrogar ali mesmo. Em segundos, estava à sua frente, aguardando a enxurrada de perguntas e a sentença final. Mas ao contrário do esperado, ela apenas me informou que estava indo embora. Ué, mas e a conversa com Dante? A verdade reveladora a meu respeito? A que fim teria levado todo aquele bate-papo entre os três na sala ao lado? Talvez estivesse se contendo para despejar a bomba quando estivéssemos a sós. Embora Lisa demonstrasse a mesma naturalidade de sempre. Eu estava mais confuso do que antes. Não sabia o que pensar.
A tensão ficou maior quando o dia seguinte chegou. As horas se passaram e nada de minha mãe me questionar a respeito de Dante ou sobre o resultado da conversa da noite anterior. Eu muito menos tinha coragem de perguntar qualquer coisa. Minha única salvação seria quando me encontrasse com Lisa à noite. Com ela teria coragem de perguntar o que havia ocorrido de fato, afinal, se ela tivesse com algum grilo a meu respeito já teria despejado suas indagações sobre mim, mas ao contrário, ligara toda manhosa me desejando bom dia.
Quando a noite chegou e me dirigi à sua casa, não aguentei muito tempo e perguntei de uma vez o que elas tinham conversado com Dante. Coisas banais. Minha mãe apenas ficou comentando sua semelhança com Murilo Benício e depois informou que era mãe do Incomum do terceiro ano, aguardando, talvez, que ele a cumprimentasse feliz por conhecer a mãe de um “grande” amigo seu. Dante apenas sorriu. Ora, eles estavam numa feira de ciências da escola, os pais de praticamente todos os alunos deviam estar circulando por lá, ela devia estar apenas informando ser mãe de algum deles. Incomum! Sei lá quem é Incomum. Sorriu. Apenas isso. E elas se foram.
Aliviado por saber que meu segredo continuava a salvo, ainda sentia o peso da desconfiança nos ombros. Lisa nada percebera, mas minha mãe permanecia calada, pensativa, em suspeita, como se algo não se encaixasse na história. Não havia mais o que fazer para tirar aquela dúvida da sua cabeça. Apenas aguardar que o tempo a fizesse esquecer. E assim o fiz.
Depois da exposição de ciências, o ano logo chegou ao fim. Era minha despedida da escola, da turma, dos professores. Novos saltos de agora em diante rumo ao vestibular, à faculdade. Sabia que era também meu adeus a Dante. Quando o veria novamente? Talvez nunca. Ah, aquela última tarde pelo colégio, circulando pelos corredores, a camisa recheada de assinaturas, e na sala do segundo ano, o último olhar para Dante, que fazia ainda sua última prova. Acabara! Eu estava me despedindo com grande emoção de alguém que sequer conhecia a minha existência.
E os meses correram. Não passei no primeiro vestibular e fui para a capital fazer cursinho. Tudo de repente se modificara. Uma nova realidade se desdobrava aos meus olhos. Nada me lembrava a vida pacata e os desejos secretos por Dante. Novos amigos foram surgindo, novas paixões e a vida parecia seguir o seu rumo.
Costumava almoçar, durante a semana, em um bar em frente ao prédio, mas aos domingos era fechado e então recorria a uma padaria próxima, que tinha um café da manhã digno de um almoço. E nesse dia, domingo das mães, a padaria estava lotada, mal encontrava local para sentar. Foi quando vi uma mesa de quatro lugares, ocupada apenas por um rapaz. Fui até lá e toquei no ombro dele, perguntando se havia alguém ali. Mal consegui segurar a respiração quando reconheci aquele rosto. Não era possível. Dante! Ele se levantou e saiu. Meus talheres escorregaram das mãos. Não conseguia comer direito. Ficava a todo instante o procurando pela padaria para não perdê-lo de vista.
O que teria acontecido? Ele estava morando ali também? Estava a passeio? Quando acabei a refeição, passei atordoado entre as pessoas, buscando aflito aquele rosto amado novamente. E o encontrei do lado de fora, em companhia de outro garoto menor, talvez primo ou irmão. Sua família devia estar lá dentro. Poderia ter ido até ele, falar que o lembrava da escola, mesmo não sendo colega dele, ele deveria se recordar do meu rosto pelos corredores. Mas não fui. Estava me achando muito desarrumado para estabelecer nosso primeiro contato de verdade. Saí da padaria, olhei rapidamente em sua direção e fui embora. Foi definitivamente a última vez que o vi.
Quando passei no vestibular, me mudei outra vez de cidade e já considerava Dante assunto morto. Foi quando surgiram as redes sociais e a febre do Orkut. Agora todo mundo poderia encontrar todo mundo e partilhar um pouquinho das intimidades de cada um. Então, por mera curiosidade, procurei e encontrei o perfil dele. Não havia muitas fotos, mas lá estava o garoto dos meus sonhos passados. Um pouquinho mais forte, porém, o mesmo sorriso e olhar inocente do primeiro dia que o vi.
Precisava colocar um fim naquela história. Ele precisava saber tudo que tinha alimentado por ele. Tudo que tinha passado em seu nome. E resolvi. Criei um perfil falso e lhe enviei um recado narrando todas as minhas peripécias desde o dia em que bati os olhos nele. Disse que ele poderia me mandar à merda, mas queria uma resposta. Precisava conhecer sua reação para seguir a vida. Um dia depois, ele me respondeu. Foi educado, talvez até sensível àquela inusitada situação, disse que agradecia todo o carinho que eu sentia por ele, mas que não poderia nunca corresponder, e no fim me pediu para não lhe enviar mais aqueles recados. Claro que eu obedeci. Não poderia exigir nada além dele. Ao menos estava aliviado. De uma maneira meio torta, tudo que tinha desejado, quando escrevi aquela primeira carta, chegara finalmente ao destinatário. Eu sabia desde o início que essa história não seria um conto de fadas, então foi uma maneira até interessante de chegar ao fim. Ela entrou para as minhas memórias platônicas e serviu para reforçar um pouquinho a minha verdadeira identidade na cabeça da minha mãe.

fevereiro 06, 2012

Amor calado [parte II] - Confronto

         Eu estava encostado na parede. Qualquer movimento ou atitude minha poderia me comprometer no que eu viesse a argumentar. Com o cartaz e a carta para Dante em mãos, minha mãe aguardava uma resposta, gélida como sua consciência. No fundo eu sentia que a mais descabida justificativa que eu viesse a dar naquele momento encontraria lógica no raciocínio dela. Tudo seria aceitável, desde que conseguisse explicar o que uma carta de amor endereçada a um rapaz estava fazendo no caderno de seu filho.
Por sorte, ou por falta dela, embarquei na viagem que eu mesmo havia idealizado. Minha prima estava apaixonada por Dante, não tinha coragem de se assumir, resolveu escrever-lhe e pediu minha ajuda para entregar a carta. Afinal, não era isso que dizia no papel? A letra nem minha era. Parece que eu estava mesmo prevendo todas as possibilidades que aquela minha iniciativa poderia resultar. E logo minha explicação foi ganhando terreno na mente da minha mãe. Suas únicas indagações foram a respeito de como minha prima o conheceu. Nem levou em análise a diferença de 5 anos entre ambos, e o detalhe que minha prima de 21 jamais se interessaria por um garoto de 16, nem mesmo precisaria de tais artifícios para conquistá-lo.
Mas a justificativa estava dada. Seu filho, para alívio da consciência, não era “veado”. Tudo não passara de um mal entendido. Opa! Por que a carta estava então ainda comigo? Ah, por acaso, esqueci de entregar e não estava levando muito a sério a súbita paixão da minha prima. Então, dobrando os papéis e já tomando posse deles, minha mãe partiu para a cozinha na missão de dar descaminho àquelas confidências que poderiam colocar em risco a reputação de seu filho. Pouco importava se sua sobrinha conseguiria ou não declarar seu amor. O que não podia de jeito algum era que eu continuasse com aquilo no meu caderno.
Não fiquei satisfeito. Apesar de ter conseguido me sair razoavelmente bem, me sentia em análise. A dúvida pairava no ar. Tanto a minha, ao pensar se realmente minha mãe havia embarcado na desculpa, como a dela, se de fato era verdade o que tinha lhe contado. E esse clima de tranquila aparência se prolongou por algum tempo. Eu estava cada dia mais cauteloso em minhas atitudes para não deixar no ar a menor dúvida sobre minha sexualidade. Mas me sentia em suspeita. Tomei algumas providências a fim de garantir que mais nada vazasse na minha história, e adulterei o telefone da minha prima na agenda. Cheguei até a mudar a caligrafia. E em decorrência disso, a letra redonda que havia cultivado até aquela idade ganhou contornos mais formais, que me acompanham até hoje.
Ainda assim, estava preocupado que a mentira pudesse perder fôlego e resolvi fornecer mais combustível para sua resistência. Logo me vi repetindo a mesma história para Lisa, minha namorada. Aos poucos, eu mesmo estava acreditando naquela farsa. Sempre tive a capacidade de embarcar nas minhas ilusões e torná-las praticamente reais. E Lisa adorava me provocar ciúmes ao falar dele. E eu adorava vê-la fazendo isso. Dante virou ‘nosso assunto’! Sem perceber, o garoto que me lembrava Murilo Benício entrou em definitivo em nossas vidas. Lisa me pedia que levasse recadinhos, que eu fingia chegar até ele. E Dante tinha reações à la minha imaginação.
Até que uma feira de ciências na escola resolveu brincar com essa realidade. Três noites de exposições de trabalhos de todas as turmas movimentaram a escola. Lisa e minha mãe, assim como as famílias de cada aluno, foram prestigiar o evento. Elas já tinham deixado claro que estavam desejosas por conhecer Dante. Ou seja, meus dois mundos estavam prestes a colidir. Na primeira noite tive a sorte de não localizar Dante em lugar algum. Parece que ele não havia ido mesmo. E para meu alívio, nem Lisa, nem minha mãe chegaram a conhecê-lo. Na segunda noite foi o contrário, elas não foram e Dante circulou com todo seu charme pelos corredores da escola.
Entretanto, a correnteza virou na terceira e última noite da exposição. Lisa e minha mãe me acompanharam, e ao chegar, encontrei o perigo ainda na entrada. Mas como elas não o conheciam nem por fotografia, passei reto e fingi naturalidade. Contudo, não se encontra um garoto parecido com Murilo Benício em toda esquina, e bastaram algumas horas correrem, pessoas circularem, e Lisa percebe Dante.
- É aquele, num é? E você disse que ele não tinha vindo.
Pronto! Já era! Ela encenou o gritinho que havia ensaiado para quando o encontrasse, e logo me vi tapando sua boca, para que não só Dante e os outros ouvissem, mas também minha mãe. Em vão. Notando que ele, de fato, se encontrava na escola, minha mãe insistiu para que eu a levasse até sua sala e a apresentasse. Aleguei que precisava voltar à exposição da minha turma e as deixei circularem sozinhas. De olho nelas, não demorou muito e percebi quando entraram na sala do 2º ano. Em pouco tempo, batiam papo com o próprio Dante. Um papo que nunca nem eu havia trocado. Era o fim! Agora com certeza tudo seria descoberto. Não havia prima nenhuma interessada nele, ele sequer me conhecia, e muito menos me convidara para conhecer sua cidade. O que explicaria à minha mãe agora? E Lisa? O que diria a ela? Como encarar Dante a partir de então?
O pânico me cercava, quando elas saíram da sala sem muitas expressões. Minha mãe parecia ligeiramente tensa. Dante e a colega do lado ainda terminavam o risinho, do que parecia ter sido uma conversa, no mínimo, divertida. O que teriam conversado? Um buraco para me enterrar! Um controle remoto para parar o tempo! Uma borracha para me apagar do mundo! Era tudo que eu queria. Elas agora vinham à minha procura. O que fazer? Como explicar que eu nunca existi aos olhos de Dante? Como justificar tantas mentiras? Haveria chegado a hora de assumir de vez o verdadeiro garoto que habitava em mim, ou teria condições de elaborar mais histórias fantasiosas para escapar outra vez? Sem mais pensar, tomei o rumo da minha sala, disposto a encarar o inevitável, fosse ele qual fosse.

fevereiro 02, 2012

Amor calado [parte I] - A carta

        Eu havia acabado de trocar de sala. Algumas mudanças tinham ocorrido nas disposições das turmas e fui parar na sala ao lado do segundo ano. Era meu último ano no ensino médio, conhecia cada buraco daquela escola, cada professor, funcionários, alunos, os mesmos rostos curiosos a circular pelos corredores no intervalo. No entanto, sentado aos pés de um dos pilares do corredor, lendo alguma coisa sobre o joelho dobrado, me deparei com o inusitado. Cabelo curto, rosto fino e um olhar inocente. Vez por outra abria um leve sorriso com a leitura. Fiquei anestesiado. Como não poderia ter notado?
Não sabia exatamente o porquê, mas aquele garoto havia despertado em mim uma súbita atração, decorrente talvez de sua beleza, ou da similaridade com o modelo de perfeição que idealizamos. A sirene do fim do intervalo tocava, enquanto eu tentava disfarçar o olhar penetrante que acompanhava os movimentos dele até a porta de sua sala. Os dias seguintes confirmaram minha teoria: estava apaixonado.
Não havia um dia sequer ao chegar à escola que não o procurasse com os olhos. Encontrava sempre um jeito de vê-lo antes da aula começar, passava pela porta de sua sala no meio da aula, e meus intervalos eram todos dele. Se estivesse no pátio, era para lá que eu iria, se permanecesse no gramado ou nos corredores, por lá eu também me encontraria. Virou minha obsessão.
Decidi então investigar melhor sua vida, como se chamava, onde morava, mas não ousaria uma tentativa de aproximação. Ele parecia um perfeito hétero, embora nessa época eu mal conseguisse distinguir um cisco de uma paquera. Mas devagar consegui descobrir que ele morava numa cidade vizinha e todos os dias pegava a estrada em um “pau de arara” ao lado de outros estudantes. Fiquei determinado a descobrir a qual cidade aquele carro pertencia.
E chegando à escola um determinado dia, tive a chance que esperava. O carro estava parado ao lado do muro e o motorista separava alguns papéis do lado de fora. Tomei fôlego e me aproximei perdendo chão a cada passo. O homem se voltou para mim, e como se eu estivesse tranquilamente procurando transporte para viajar, perguntei.
- Esse carro vai pra onde?
O homem disse lá o nome de uma cidadezinha que eu já tinha ouvido falar, embora nunca tivesse ido. Agradecido, me retirei. Podia imaginar o olhar indagativo do homem atrás de mim. Mas que importava? Agora sabia onde meu pupilo morava. Ah, minha mente fantasiou tantas ideias. Poderia pegar um carro um fim de semana e ir visitar a cidade, quem sabe esbarrar nele e sair com aquela, “opa, você não estuda em tal escola?”, e nossa amizade surgir daí. Mas como justificar a viagem a minha mãe? E nem o nome dele eu sabia. Como iria encontrá-lo lá?
Foi então que para surpresa minha, o próprio resolveu me dá uma forcinha. Reparei certa vez durante o intervalo, que havia um nome riscado à caneta na perna da calça da farda dele, em toda a extensão da coxa. Olhei fixamente e identifiquei. Dante. Seria o nome dele? Esquisito. Precisava confirmar. E encontrei o meio através do professor de biologia. Augusto era completamente descontraído. Não havia aquele muro entre aluno e professor com ele, de modo que se algum aluno quisesse saber sua nota do bimestre anterior e ele estivesse longe do diário de classe, o aluno tinha total permissão para ir até lá e conferir. Foi o que acabou acontecendo comigo. Porém, eu aproveitei a oportunidade e chequei a turma do segundo ano, e lá estava com todas as letras, Dante.
Agora sabia seu nome e onde morava. Mas de que me adiantava? Eu nunca teria nada com ele. Resolvi então criar meu universo paralelo, onde Dante era o meu melhor amigo e até já havia me convidado para ir a sua cidade. Foi essa a versão que apresentei a minha mãe e até a Lisa, a garota com quem eu namorava já há alguns meses. Me contentava em fantasiar a elas, minha forte amizade com ele. Toda semana criava uma história diferente que envolvia Dante e a sua popularidade na escola. Dante e as meninas que se derretiam por ele. Dante e sua semelhança com Murilo Benício. Tanta confidência acabou despertando o interesse de Lisa, e logo ela estava ansiosamente curiosa para conhecê-lo. Era melhor eu diminuir o ritmo ou a coisa poderia sair do controle.
Voltei a focar na realidade a partir daí. Estava cada dia mais envolvido por Dante, e todas aquelas histórias que havia contado sobre ele só aumentavam ainda mais meu desejo de ter realmente algum contato com ele. Precisava fazer algo. Dante precisava ao menos tomar conhecimento do carinho que sentia por ele, precisava saber o quanto alguém ali na escola o estimava. Decidi então escrever um cartaz numa folha de ofício e pregar no quadro de sua sala, para que não só ele, mas toda a turma lesse e gerasse aquele murmurinho em torno de sua pessoa. A ideia de vê-lo se sentindo o máximo entre os colegas, estimulava minha imaginação.
E eis que preparei o cartaz descrevendo o quanto o admirava, o achava bonito e possuía muitas outras qualidades. A ideia era chegar um pouco mais cedo na escola e pregar o cartaz antes que qualquer aluno chegasse. Mas sempre aparecia alguém ou eu me sentia suspeito por ser o único a circular tão cedo pelos corredores, de modo que o cartaz foi ficando. Talvez fosse melhor escrever uma carta. Sim, uma carta endereçada unicamente a ele. Jogaria no carro que ele viajava e pronto. Mas não me identificaria a princípio. Precisava de um pseudônimo convincente. Escrevi como se fosse uma prima minha que se apaixonara por ele, mas não tinha coragem de se declarar, pedindo encarecidamente que eu lhe fizesse o favor de entregar a carta. Modifiquei até a letra. Tudo estava armado. Mas assim como o cartaz, também não encontrei a ocasião perfeita e ela também foi ficando.
Até que um dia, uma declaração escolar modificou os planos. Minha mãe me cobrava constantemente esse documento da escola, não me recordo para quê. O fato é que eu já tinha solicitado, já estava comigo, só que em meio à minha papelada, não conseguia encontrar. Pois ela resolveu agir, e numa determinada manhã quando acordei e abri a porta do quarto, estava lá na sala, meu caderno aberto, vários papéis em volta, a declaração nas mãos de minha mãe e ao lado, o cartaz e a carta para Dante.
- Encontrei a declaração. Agora o que é isso aqui?
Foi uma pergunta tão apreensiva pelo conteúdo da resposta, que eu não sei quem estava mais gelado. E eu tinha apenas alguns segundos para conseguir elaborar uma justificativa aceitável. Mas como já diz o ditado, quem brinca com fogo...