Eu estava
encostado na parede. Qualquer movimento ou atitude minha poderia me comprometer
no que eu viesse a argumentar. Com o cartaz e a carta para Dante em mãos, minha
mãe aguardava uma resposta, gélida como sua consciência. No fundo eu sentia que
a mais descabida justificativa que eu viesse a dar naquele momento encontraria
lógica no raciocínio dela. Tudo seria aceitável, desde que conseguisse explicar
o que uma carta de amor endereçada a um rapaz estava fazendo no caderno de seu
filho.
Por sorte, ou
por falta dela, embarquei na viagem que eu mesmo havia idealizado. Minha prima
estava apaixonada por Dante, não tinha coragem de se assumir, resolveu
escrever-lhe e pediu minha ajuda para entregar a carta. Afinal, não era isso que
dizia no papel? A letra nem minha era. Parece que eu estava mesmo prevendo todas
as possibilidades que aquela minha iniciativa poderia resultar. E logo minha
explicação foi ganhando terreno na mente da minha mãe. Suas únicas indagações
foram a respeito de como minha prima o conheceu. Nem levou em análise a
diferença de 5 anos entre ambos, e o detalhe que minha prima de 21 jamais se
interessaria por um garoto de 16, nem mesmo precisaria de tais artifícios para conquistá-lo.
Mas a
justificativa estava dada. Seu filho, para alívio da consciência, não era “veado”.
Tudo não passara de um mal entendido. Opa! Por que a carta estava então ainda
comigo? Ah, por acaso, esqueci de entregar e não estava levando muito a sério a
súbita paixão da minha prima. Então, dobrando os papéis e já tomando posse deles,
minha mãe partiu para a cozinha na missão de dar descaminho àquelas confidências
que poderiam colocar em risco a reputação de seu filho. Pouco importava se sua
sobrinha conseguiria ou não declarar seu amor. O que não podia de jeito algum
era que eu continuasse com aquilo no meu caderno.
Não fiquei
satisfeito. Apesar de ter conseguido me sair razoavelmente bem, me sentia em
análise. A dúvida pairava no ar. Tanto a minha, ao pensar se realmente minha
mãe havia embarcado na desculpa, como a dela, se de fato era verdade o que
tinha lhe contado. E esse clima de tranquila aparência se prolongou por algum
tempo. Eu estava cada dia mais cauteloso em minhas atitudes para não deixar no
ar a menor dúvida sobre minha sexualidade. Mas me sentia em suspeita. Tomei
algumas providências a fim de garantir que mais nada vazasse na minha história,
e adulterei o telefone da minha prima na agenda. Cheguei até a mudar a
caligrafia. E em decorrência disso, a letra redonda que havia cultivado até
aquela idade ganhou contornos mais formais, que me acompanham até hoje.
Ainda assim,
estava preocupado que a mentira pudesse perder fôlego e resolvi fornecer mais combustível
para sua resistência. Logo me vi repetindo a mesma história para Lisa, minha
namorada. Aos poucos, eu mesmo estava acreditando naquela farsa. Sempre tive a
capacidade de embarcar nas minhas ilusões e torná-las praticamente reais. E
Lisa adorava me provocar ciúmes ao falar dele. E eu adorava vê-la fazendo isso.
Dante virou ‘nosso assunto’! Sem perceber, o garoto que me lembrava Murilo
Benício entrou em definitivo em nossas vidas. Lisa me pedia que levasse
recadinhos, que eu fingia chegar até ele. E Dante tinha reações à la minha
imaginação.
Até que uma
feira de ciências na escola resolveu brincar com essa realidade. Três noites de
exposições de trabalhos de todas as turmas movimentaram a escola. Lisa e minha
mãe, assim como as famílias de cada aluno, foram prestigiar o evento. Elas já
tinham deixado claro que estavam desejosas por conhecer Dante. Ou seja, meus dois
mundos estavam prestes a colidir. Na primeira noite tive a sorte de não
localizar Dante em lugar algum. Parece que ele não havia ido mesmo. E para meu
alívio, nem Lisa, nem minha mãe chegaram a conhecê-lo. Na segunda noite foi o
contrário, elas não foram e Dante circulou com todo seu charme pelos
corredores da escola.
Entretanto, a
correnteza virou na terceira e última noite da exposição. Lisa e minha mãe me acompanharam,
e ao chegar, encontrei o perigo ainda na entrada. Mas como elas não o conheciam
nem por fotografia, passei reto e fingi naturalidade. Contudo, não se encontra
um garoto parecido com Murilo Benício em toda esquina, e bastaram algumas horas
correrem, pessoas circularem, e Lisa percebe Dante.
- É aquele, num
é? E você disse que ele não tinha vindo.
Pronto! Já
era! Ela encenou o gritinho que havia ensaiado para quando o encontrasse, e
logo me vi tapando sua boca, para que não só Dante e os outros ouvissem, mas
também minha mãe. Em vão. Notando que ele, de fato, se encontrava na escola,
minha mãe insistiu para que eu a levasse até sua sala e a apresentasse. Aleguei
que precisava voltar à exposição da minha turma e as deixei circularem
sozinhas. De olho nelas, não demorou muito e percebi quando entraram na sala
do 2º ano. Em pouco tempo, batiam papo com o próprio Dante. Um papo que nunca
nem eu havia trocado. Era o fim! Agora com certeza tudo seria descoberto. Não
havia prima nenhuma interessada nele, ele sequer me conhecia, e muito menos me
convidara para conhecer sua cidade. O que explicaria à minha mãe agora? E Lisa?
O que diria a ela? Como encarar Dante a partir de então?
O pânico me
cercava, quando elas saíram da sala sem muitas expressões. Minha mãe parecia
ligeiramente tensa. Dante e a colega do lado ainda terminavam o risinho, do que
parecia ter sido uma conversa, no mínimo, divertida. O que teriam conversado?
Um buraco para me enterrar! Um controle remoto para parar o tempo! Uma borracha
para me apagar do mundo! Era tudo que eu queria. Elas agora vinham à minha
procura. O que fazer? Como explicar que eu nunca existi aos olhos de Dante?
Como justificar tantas mentiras? Haveria chegado a hora de assumir de vez o
verdadeiro garoto que habitava em mim, ou teria condições de elaborar mais
histórias fantasiosas para escapar outra vez? Sem mais pensar, tomei o rumo da
minha sala, disposto a encarar o inevitável, fosse ele qual fosse.
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