novembro 21, 2011

Coisas de menina

            Primeira coisa:
Todo ano meus primos passavam o natal na casa da minha avó, já era uma tradição. Os parentes dos lugares mais distantes do país vinham para festejar o nascimento de Cristo em família. Gente que não se suportava fingia ternura e harmonia. Cada qual com suas queixas, intrigas, opiniões, invejas e instinto competitivo prestes a saltar ao menor vacilo. Mas tudo era aparentemente camuflado, até algo novo surgir bem no meio de todos os presentes. E poderia vir do mais simples detalhe.
Como a maioria dos meus primos eram meninas, era natural que com elas viessem também as mais modernas bonecas do mercado. Eu ficava encantado com aquele arsenal de Barbies e Kens com várias roupas, carros, móveis, eletrodomésticos. Os bonecos dos meninos eram tão sem graça, a gente nem podia mudar a roupa ou trocar o penteado deles. Quando ninguém estava olhando, eu pegava o Ken ou uma das Barbies e ficava examinando, sentindo o movimento dos braços e pernas, colocando alguns para andar. Por que eu não podia ter um daqueles?
Depois do almoço, as meninas se juntavam no quarto e começavam a brincar, trocavam as bonecas, mostravam as novidades que cada uma tinha. Eu ficava observando no canto da porta com uma vontade de me juntar a elas, mas sabia que só por olhar eu já poderia ser recriminado. Uma das minhas primas mais novas ao me ver, me convida ingenuamente para brincar. Aquele convite parecia a liberdade, mas logo minha prima mais velha me põe no lugar.
- É melhor você não vim, senão sua mãe vai ver e vai botar a culpa na gente.
É, ela tinha razão, eu não deveria ser o responsável por estragar o clima de harmonia da família. Nem muito menos queria todos me apontando como estranho. Era melhor ir para a calçada e ver o carro de controle remoto do meu primo.

Segunda coisa:
Toda tarde eu escutava a fita k-7 de Xuxa que minha tia havia gravado para mim. Eu gostava de ficar cantando e dançando no quartinho do quintal da minha avó. Um dia chegou de visita uma prima mais velha. Juntos passávamos horas lá, comíamos pipoca, brincávamos, sempre ouvindo Xuxa. Até que minha mãe me disse:
- Por que você não dá essa fita pra sua prima? Ela gosta tanto de Xuxa. E essas músicas são mais pra meninas.
Mas eu também gostava. E Xuxa não era a rainha dos baixinhos? Ou seria só das baixinhas? Uma semana depois, minha prima viajou com minha fita.

Terceira coisa:
A cada três meses, no máximo, era a mesma tortura. Cabelo passando demais da orelha era o sinal para cortar. Eu detestava ir ao cabeleireiro, ele sempre cortava demais, mesmo se eu levasse uma foto para mostrar como queria. E minha mãe era incisiva.
- Tem que cortar! Vai virar menina agora com cabelo grande?
Eu só queria um cabelo um pouquinho maior, de modo que eu não parecesse um poodle tosado depois do corte. Por muitos anos, o dia do cabeleireiro era tão somente comparado à visita ao dentista. Até que Sandy e Junior vieram ao meu auxílio. Explorando minha veia artística, comecei a dublá-los em festinhas na cidade, e assim, minha mãe concordou em me deixar com o cabelo de Junior. Durante algum tempo, o mullet me ajudou a me manter longe daquele barulhinho infernal da máquina de corte.

Quarta coisa:
Sem poder ter as bonecas e as casinhas das minhas primas, eu criava minhas próprias estratégias para ter o queria. Com os bonecos que eu tinha, simplesmente transformava alguns em mulher, e acreditava tanto naquilo que nada mais me faria ver o boneco como homem. Assim, constituía as famílias. Minha mãe, mais uma vez, se preocupou.
- Casinha é brincadeira de menina. Homem brinca é de guerra.
Cheguei a ser ameaçado de perder os bonecos, caso eu insistisse naquilo. Foi então que descobri como driblar o inimigo. Criava as casas e as famílias e depois montava uma guerra em cima. Soldados matavam pais, filhos, irmãos. Tudo era destruído. Minha mãe agora estava feliz. Aquele tipo de brincadeira sim era saudável.

Conclusão:
As mães acham que se evitarem o contato dos filhos com o “universo feminino” quando são crianças, estarão evitando que eles se "tornem" gays no futuro. Quanta ignorância!

21 comentários:

  1. Tua mãe desconfiava da sua orientaçao?abraços.

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  2. ah, amigo, isso é comum, sua mãe não qria evitar q vc se tornasse gay, mas na geração dela as brincadeiras e os papeis eram muito estanques, meninos tinha que agir assim, meninas tinham que agir assado, vc só teve uma mãe machista, apenas isso.

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  3. Lobinho, mãe sempre desconfia, né?
    Mesmo não querendo enxergar.
    Mais a frente vou escrever alguns momentos de completa cegueira voluntária da minha mãe.

    Abraço!

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    Foxx, minha mãe é machista sim. Não resta dúvida. Mas o próprio machismo de querer separar o que é de menino do que é de menina, revela o medo de que uma mistura de comportamentos possa desvirtuar a sexualidade do filho. As típicas frases como "homem não chora" é um exemplo disso. Se vc chora vc não é homem, é bicha.

    O machismo da minha mãe associa a troca de comportamento a uma tendência homossexual.

    Ainda hoje eu vejo isso nela com relação a meu primo mais novo.
    Outro dia ele pegou e enfiou o sapato dela no pé, enquanto ela se vestia, e imediatamente ela o advertiu para que tivesse cuidado senão iria virar bicha.
    Ela sempre teve pânico de que eu "virasse" gay de uma hora para outra. E posso lhe assegurar que ela não me deixava fazer tudo que eu relatei por medo disso.

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  4. Gays são gays porque gostavam de brincadeiras ditas de meninas,
    ou gostavam de brincadeira ditas de meninas porque já eram gays?

    Quem puder fazer uma afirmação categórica, definitiva, inquestionável, que atire a primeira!

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  5. Aí é que está, Alex!
    Gays são gays porque assim chegaram ao mundo.
    Brincar com o que definiram como "brincadeira de menina" não fará ninguém homossexual.
    Nem tampouco todos os gays terão interesse nesses tipos de brincadeira.
    O que quis mostrar é somente como as pessoas fazem uma separação absurda do que meninos e meninas devem fazer e acabam proibindo uma troca de conhecimento saudável entre ambos.
    E toda essa divisão só contribui para o mundo ficar cada dia mais machista e homofóbico.

    Abraço!

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  6. Ela sabe que vc é gay?Vc já falou?

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  7. Não, Lobinho! Nunca falei.
    Também eu passei a me aceitar faz pouco tempo, contei aos meus amigos de verdade e foi muito bom. Recebi carinho, incentivo. Me fez muito bem.
    Não contei ainda a minha mãe porque acredito que para tudo existe a sua hora.
    E seria desperdiçar uma informação valiosa agora.
    Mas um dia pretendo fazê-lo.
    Acontece que toda mãe desconfia quando o filho é gay, e com a minha não é diferente.
    Ele vivia em pânico quando eu era menor, fazendo de tudo para me empurrar para a vida de um garoto hétero, com o namoro de 8 anos ela se aquietou mais, passou a achar que eu era hétero mesmo.
    Hoje estamos preocupados com o meu futuro profissional, mas quando isso se ajeitar, pode apostar que as cobranças irão voltar, aí sim será o momento de contar.

    Abração!!

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  8. Acredito que isto de coisa de menina ou menino é ideologia barata, na idade média meninos brincavam com bonecas e nem por isso cresciam e viravam gays. E os pais de hoje em dia querem impor a sexualidade dos filhos... Um abraço!!!!

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  9. Acho que a gente não pode muito culpá-las. Isso é mais reflexo da sociedade que viveram do que necessariamente a vontade delas. Acho que se eles tivessem noção do dano que isso causa, nunca se proporiam a fazer isso.

    Beijos!

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  10. É isso mesmo que penso, Juan!!
    Uma ideologia barata que só leva ao preconceito.

    Abração!!

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    Lobo, não quero culpar ninguém, muito menos as mães que agem assim. Amo minha mãe, com todos os erros que cometeu na minha criação, assim como ela me ama, com todos meus erros.
    Mas essa separação da sociedade só prejudica o desenvolvimento das crianças.
    Se uma menina brinca de carrinho ou se interessa por futebol, os pais já se preocupam com sua sexualidade. O mesmo se um menino brinca de boneca. E não tem nada a ver. O brinquedo que desperta o interesse numa criança não fará dela isso ou aquilo.

    Para os pais ainda tem que ser preto ou branco, não existe meio termo, o meio termo seria o homossexual, e nenhum pai quer ser o "influenciador" disso. Isso é um reflexo da sociedade? É! Mas um reflexo baseado no preconceito e na homofobia. E isso precisa acabar. É disso que estou falando.

    Abração!!

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  11. "Se uma menina brinca de carrinho ou se interessa por futebol, os pais já se preocupam com sua sexualidade." Eu vi faz algum tempo um documentário da BBC sobre as diferenças do cérebro de homens e mulheres. O programa dizia que ninguém tem um cérebro completamente feminino ou masculino. Mas no caso de um menino brincar de boneca o estranhamento da sociedade é maior do que se uma menina brincar de carrinho.

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  12. meu pai me disse uma coisa muito importante depois de um tempo que soube que eu era gay:
    - Filho, acho que você é assim e é meu filho pra eu aprender muita coisa na vida, ser alguém melhor talvez. Então sabia que eu estou aprendendo, e muito com você. E sou muito agradecido por isso!

    Que tal pensar assim com sua mãe?
    bjo e boa sorte ai!

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  13. Dan, mas eu penso exatamente assim.
    Que a minha sexualidade é um aprendizado e um crescimento mútuo entre minha mãe e mim.
    Penso que quando ela souber, quando tiver refletido e me entendido, ela irá olhar o mundo com muito menos preconceito, com um sentido bem mais humano, e mudará toda essa visão ideológica barata da sociedade.
    E ouso pensar que seremos ainda mais amigos e unidos.
    Mas tudo a seu tempo.

    Abração!!

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  14. Coisas de menino: passar o rodo geral nos primOs disponíveis... hehe!

    Acho que isso de evitar contato dos meninos com o universo feminino acontece muito... mas felizmente não é regra!

    Hugz!

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  15. Oi, bacana esse seu blog... o visual super adequado, sua escrita muito delicia... gostei. Posso seguir?

    Abração

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  16. Ui, eu quero uma barbie todinha pra mim!

    Quanto a fita da Xuxa, pensa só: agora você pode ter o CD. A qualidade é melhor e a durabilidade nem se fala. Aliás, adoro durabilidade.

    Darling, e se você quiser brincar de guerra comigo, é só me ligar, tá.

    Beijinho, beijinho, tchau, tchau.

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  17. Oi, Cesinha, sinta-se à vontade para seguir meu diário. Que bom que gostou dele.

    Abração!! =)

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    Scarlet, eu tenho um cd de Xuxa hoje, aqui acolá eu escuto e volto à infância. Minha mãe diz "tá ouvindo isso?", mas eu nem ligo. rsrs

    Abração!!

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  18. As maes sofrem conosco: ninguem quer que um filho criado com tanto amor seja gay e motivo de chacota para a sociedade!
    Creio que muitos gays se pudessem, escolheriam nao ter nascido gays...

    Hoje eu sinto muito orgulho do que sou e entendo que tu=inha que ser assim tanto para a minha vida quanto para a vida dos membros da minha familia, todos temos que aprender com tudo isso!


    Hoje vejo como minha mae (que ja sabe que sou gay e esconde isso comigo do resto da familia a 7 chaves) se comporta quando alguem faz piadinhas de gay nas conversas de familia: ela disfarca e sofre la dentro, assim como eu!

    As coisas estao mudando pouco a pouco, mas ainda ha muito que ser mudado...

    Um dia todos saberao e como voce mesmo disse: Tudo a seu tempo!

    Forca ai! E que a Xuxa seja etenizada nos coracoes dos seus baixinhos!!! XxXxXxXxXxXxXxXxXxXxX

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  19. Eu falo que todas as mães deveriam morrer quando o filho fizesse 18 anos... É por essas e outras...

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  20. Falou muito bem, Jardineiro!
    Ninguém quer o "anormal".
    Os pais não querem, nós não queremos quando descobrimos, mas tudo com o tempo, é compreendido e aceito.
    É um aprendizado para todos os envolvidos.
    Por isso quero q minha mãe chegue ao conhecimento da minha sexualidade um dia.
    Não posso negar a ela o direito de viver esse aprendizado.

    Consegui entender a dor da sua mãe às piadinhas sobre gay q ela escuta.
    Nenhuma mãe quer seu filho sofrendo, e comete todos os erros na tentativa de acertar.

    *************

    Por isso, Cara Comum, que não acho que o caminho seja o q vc citou. Não! Assim como tivemos nosso período de negação e compreensão, elas tbm precisam desse tempo.
    E mãe é a maior benção que temos na vida.

    Abração!!

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  21. Minha mãe nunca foi problema. Meu pai, por outro lado, sempre me podou demais. Cada "ai" que eu dizia, ele me reprimia. Unhas compridas (que encaro como comportamento heterossexual, inclusive!) era motivo para perguntas do tipo: "Mas, tu gosta de usar unha comprida?!"
    Fazer o que?
    Hoje em dia... estranhamente, temo mais pela minha mãe.

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