novembro 22, 2011

Conhecendo um travesti

A notícia que minha tia chegara dizendo aquela manhã era realmente inusitada. Um homem que havia virado mulher. Eu estava na casa da minha avó, provavelmente brincando ou vendo TV, mas não pude deixar de prestar atenção na conversa entre ela, minha avó e minha mãe. A figura em questão era um garoto que fora vizinho da minha avó antes de eu nascer. Pelo que diziam, um menino esperto, obediente, tranquilo e muito educado. Um modelo de filho para toda mãe de uma cidadezinha de interior. Ainda mais se ele fosse adotado.
Carlinhos, como era chamado, passara sua infância quase despercebido na cidade, enevoado pela superficialidade de um bom menino. Mas sua popularidade estava prestes a mudar. Quando entrou na adolescência, ele foi estudar fora e até então nunca mais havia aparecido na cidade. Sua mãe falecera na capital e lá mesmo ele se despediu dela, sem comparecer ao enterro no interior. Mas agora ele estava voltando para morar com sua irmã, e o seu retorno causaria um grande burburinho na cidade. Carlinhos agora era Carla.
Foi assim que fiquei sabendo da novidade pela minha mãe. Como aquilo era possível? Um homem ir embora e voltar mulher? Fiquei me lembrando dos bonequinhos que vendiam nas barraquinhas da festa do padroeiro, que com algumas mudanças nas peças era possível mudar o sexo. Aquilo me intrigou. Minha tia fazia questão de enfatizar como ele era quando moleque e como estava agora. Um ar de curiosidade, espanto e diversão se misturavam em seu relato. Uma expressão que pude notar também na minha mãe e na minha avó.
- Vão lá fazer uma visita a ele agora – sugeriu minha tia.
Essa visita estava longe de ser a prática da boa vizinhança para dar as boas-vindas ao filho da terra. Era puramente motivada pela curiosidade na figura que o garoto havia se transformado. Carlinhos... Carla era o espetáculo gratuito do mais novo circo da cidade. E como público cativo, não era possível perder essa nova atração. Não me recordo se fiz questão em ir junto ou se me levaram para mostrar um exemplo de ser humano deplorável. O fato é que numa determinada noite, minha mãe, minha avó e eu estávamos lá, batendo à porta de sua casa.
Quem nos recebeu e nos fez sala foi Zilar, a irmã de Carla. Sempre muito simpática e receptiva, conversou um pouco conosco enquanto Carla não chegava. Ela, ao menos aparentemente, tratava tudo com muita naturalidade. Se algum tipo de preconceito circulava em sua cabeça, ela sabia guardar somente pra ela. Eu olhava sempre curioso, à espera de que a qualquer momento Carla aparecesse na sala e eu pudesse finalmente ver o homem que virou mulher.
Não demorou muito e lá do quarto, Carla surgiu. Sapato alto quase coberto por uma longa saia no bom estilo hippie (embora na época eu não fizesse a associação), uma blusa regata, cabelos escuros e longos e um batom suave na boca. As expressões do rosto não deixavam dúvida. Era um homem vestido de mulher. Então era só isso? Ele não tinha virado mulher, apenas se vestia como uma. Por quê? Acho que minha curiosidade era evidente, mas Carla devia estar acostumada com a reação de surpresa das crianças ao vê-la e não se importou. Minha mãe e minha avó a cumprimentaram cordialmente. E minha avó soltou aquela clássica frase de quando não se vê uma pessoa há muito tempo.
- A última vez que eu te vi você era desse “tamainho”.
Pois é, o tempo havia passado e Carlinhos crescera, até onde eu não imaginava ser possível. Ele tinha seios! Como um homem poderia ter seios? Tudo bem que ele se vestisse de mulher, mas como conseguiu que os peitos crescessem? Aquilo roubou totalmente meu foco. Queria uma explicação, mas não ousaria fazê-la ali. Sequer prestei atenção na conversa que desenrolou entre elas, sobre a vida de Carla desde que saiu da cidade e a mudança que se deu em sua identidade.
Quando fomos embora, ainda na calçada fiz a primeira pergunta.
- Afinal ele é homem ou mulher?
- Homem, mas prefere ser mulher – minha mãe respondeu.
- Por quê?
- Porque ele quer. Saiu daqui um moleque “véi” e a gente nunca imaginou que ele fosse virar isso.
- Se ele é homem, então por que tem peito de mulher?
Essa, minha mãe não soube responder ao certo. Atribuiu aos hormônios, a todo tipo de tratamento e cirurgia. Silicone não era popular naquela época e era muito pouco provável que ele tivesse colocado algum. Ainda assim fiquei curioso. Estava acostumado com a figura do homem e da mulher, e Carla misturava os dois. Não sabia que pronome deveria usar para defini-la. Só uma coisa eu sabia, ela não era bem vista.
E foi assim que fui descobrindo que além do homem e da mulher, havia outra figura, uma que mesclava os dois gêneros e que as pessoas davam vários nomes. Carla foi sinônimo de “veado” por muito tempo na cidade, e apesar de ser travesti, era essa a definição que carregava nas ruas, muito mais pelo fato de se vestir de mulher do que por se envolver com homens. Para todos, Carla era a bicha, a Barbie, a boneca. Enquanto morou na cidade, ela sofreu todo tipo de piadinha e falatório, até que foi embora de vez e nunca mais eu tive notícias suas. Mas Carla era só o primeiro contato que eu teria com as diversas formas de sexualidade humana, em breve eu conheceria outra bem mais perto do que poderia imaginar.

16 comentários:

  1. Boa noite. Parabéns, gosto muito do seu jeito de escrever, do seu ritmo.

    Penso o seguinte: um aspecto que nos diferencia dos outros animais é a capacidade de nos reconhecermos, por exemplo, olhando no espelho, em uma foto, etc. Essa “individualidade”, tão característica de cada um de nós, é toda construída (como no seu quebra-cabeça... kkkkk), desde o momento em que nascemos, por todas as informações e experiências que configurarão o nosso “filme” individual.

    Outro aspecto interessante em nós consiste em enxergarmos os outros seres humanos da mesma forma como nos enxergamos no espelho... todos somos uns o espelho dos outros, entende? Ao mesmo tempo em que penso na grandeza existente nessa nossa capacidade de assim enxergar, penso também no grande peso que tal capacidade traz associado.

    Por exemplo: você gostaria de se olhar no espelho e ver, ali refletido, alguma coisa que lhe causasse medo, pavor, angustia, sei lá, sentimentos não muito agradáveis? Isso te assustaria? Porem, em que consiste o medo?

    Tenho cá pra mim (não sou psicólogo) que o medo se deve a um único motivo: estarmos diante do desconhecido. Conhecer... outra grande capacidade da espécie humana! Basta querer...

    Abraços

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  2. Valeu, Foxx!! =)

    **************

    Sim, Cesinha, o desconhecido sempre causa medo. Daí o preconceito.
    Julga-se errado aquilo que não se conhece a fundo.
    Se todos soubessem que quanto mais aberto ao conhecimento, mais evoluídos estaremos, não haveria tanto preconceito.

    Abraço!

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  3. De fato você falou tudo: o desconhecido causa medo, e - na maioria das vezes - preconceito. Piora numa sociedade pequena, acostumada com o comum, ou o fácil...

    Obrigado pela visita ao meu blog cara! Com certeza posso ser classificado também como "gay incomum", talvez até "gay de outro mundo", rsrs!

    Abraços!

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  4. Sabe que me amarro nos seus posts,né?Sempre te disse que muitos papos com minha irmã saem de suas ”conversas”.
    Há alguns anos atrás,minha irmã voltou do Brasil com uma novidade idêntica a essa.O que ela não entendia e nem eu entendi também: ela namorava um cara do sítio (no interior de SP) e dizia ao seu namo que enquanto não casasse,só fariam sexo anal.
    Menino,até hoje ela indaga se o cara acredita.

    O ser humano é tão complexo.
    Abraços.

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  5. muito bom o texto ... a vida e toda a a sua complexidade ...

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  6. A primeira vez que vi um trans foi na faculdade. Era nítido que era um homem que tomava hormônios, mas eu não conseguia entender o porque do alvoroço todo que isso causava. O mais engraçado é que era uma trans lésbica: Virou mulher, mas continuava pegando mulher.

    A Sexualidade é uma coisa muito engraçada mesmo :p.

    Olha, eu não tenho fobia de gente não. Eu apenas não gosto delas. Eu entendo que preciso conviver com algumas, não tem pra onde correr, mas a minha vontade era de exterminar quase todas. Ultimamente anda pior, porque tenho deixado isso transparecer. E ai as pessoas fogem com medo hahaha.

    Beijo!

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  7. Eu a-do-ro essas experiências novas. E adoro estar perto de pessoas que não têm medo de ser quem são.

    Aliás, o texto está lindamente escrito. Eu só aceito te chamar de incomum se for no sentido de único, ou de sensível. Qualquer coisa de bom.

    Beijos da Scarlet

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  8. Seu texto é MUITO bom. Adoro quando encontro pessoas que me fazem querer ler mais e mais e mais. Aqui foi assim.

    Caí de paraquedas, mas quero voltar, viu!

    Ah, só uma sugestão.
    Pelo menos para mim, aparece apenas um post por página no blog. Pra eu ler o(s) post(s) antigos tenho que clicar em Postagens Mais Antigas cada vez que leio um novo texto.
    Isso foi intencional?
    Acho que para os mais preguiçosos isso acaba sendo ruim, já que vc tem o trabalho de ficar procurando o que ler.

    Um abraço,
    Eu

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  9. Um dos baratos dessa vida é justamente esse: a gente pode ser/virar o que quiser... não é bacana?!? Curti o texto muito mesmo! Congratzzzzzz! Hugz!!!!!

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  10. Lobinho, não sabia que muitos papos com sua irmã saíam das minhas histórias.
    Isso é legal!!
    Leva o que escrevo aqui para além da net.

    Abração!!

    *********************

    Scarlet, todos nós somos únicos e por isso incomuns. A sociedade é que cria o esteriótipo e quer todo mundo igualzinho.
    Mas aceito o elogio!! =)

    Abração!

    *********************

    Autor, do lado direito da página tem o arquivo do blog, com todas as postagens discriminadas.
    Não são muitas ainda.
    A ideia de colocar somente uma postagem por página é justamente remeter às páginas reais de um diário.
    Agradeço sua visita e os elogios.
    Seja sempre bem-vindo!
    Estou te linkando tbm.

    Abraço!!

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  11. Olá, desculpe o sumiço. Final de ano é 1 loucura pra mim.
    A demora compensou pela leitura desse texto que mais parece capítulo de um bom livro. Me remeteu ao passado e lembrei das crianças do bairro que eram 'mal-faladas'; possivelmente 'viadinhos'. Abraços ;)

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  12. Todos já disseram, e eu repito. Seus textos são muito gostosos de se ler. Sua escrita é convidativa.

    Cesinha comentou bem. O medo do espelho, o medo do desconhecido. Gente segura de si não costuma ter muitos preconceitos e aceita mais facilmente a diversidade humana.

    Já conheci travestis pessoalmente. São seres humanos que têm as mesmas alegrias e as mesmas tristezas que temos todos nós. Com a diferença que o mundo prefere vê-los sempre mais tristes do que alegres.

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  13. Meu primeiro contato direto com travestis se deu no exterior e, diga-se de passagem, quebrou milhoes de esteriotipos bobos que eu tinha a respeito deles.

    Esse post me trouxe de volta ao passado, mais precisamente quando fiz minha primeira visita ao Brasil, onde pude ver o quanto era fechada a cabecinha das pessoas do interior: desde um dos meus vizinhos que se assumiu gay e tornou-se cabeleireiro ate meus amigos de Ensino Medio vindo me visitar e comentando estarem chocados com dois dos nossos amigos ate entao "aparentemente normais" (heteros, kkkk) que tinham "virado" gay.

    Ja nestas ferias, minha mae comentou o choque que a familia havia sofrido ao saber que o primo de uma prima minha (que nao e do nosso lado da familia) havia sido pego tendo um caso com outro cara...

    Mais chocante do que a reacao deles e eu ter escutar a tudo isso!

    Abracao!

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  14. Belo texto! Só tive conato com um travesti/transexual depois de mais velho, numa época em que preconceitos já inham sido vencidos... Então, minha história seria bem diferente... Mas gostei do seu texto exatamente porque me faz viver uma história que eu não vivi!

    Beijos!

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  15. Pois é, Jardineiro!
    Uma coisa que sempre digo, é q a homofobia precisa acabar primeiro em casa.
    Crescemos ouvindo nossas famílias se chocar com casos como esses, e tudo isso mexe com a cabeça da gente.
    Até atravessar a barreira da normalidade social e encontrar a nossa própria realidade, o desgaste foi grande.

    **************

    Cara Comum, ainda bem que certos preconceitos estão perdendo o prazo de validade, né?
    Espero que outros percam tbm no futuro. =)

    Abração!!

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