dezembro 07, 2011

O encontro [parte II] - O Beijo

             Já era a terceira rua que a gente atravessava sem sequer saber aonde iríamos. O silêncio se fazia majestoso, enquanto minha mente borbulhava. Quais seriam as intenções de Kelly comigo? Será que ela pensava que eu era um garanhão que saía pegando todas do catecismo? O que aconteceria se eu não soubesse beijá-la? Será que eu devia pegar em sua mão? Onde isso tudo iria terminar? Diante de todas as interrogações, uma preocupação era constante: “como me livrar dessa situação?”. Sempre um pouco atrás de nós, revezando no comando e garupa da bicicleta, Ritinha e Ravier, como dois cães de guarda.
             - Por que vocês não vão pro Clube do Além?
             Foi a sugestão de Ravier. O Clube do Além era uma pequena casa de eventos da cidade, construída em um local ermo cercado de matagal, justamente para evitar reclamações de vizinhos. O clube não funcionava todo dia, e a intenção de Ravier ao sugerir o local era simplesmente por ser afastado. Olhei para Kelly e senti ali que meu destino estava traçado.
            Não demorou muito e nos aproximamos do tal clube. De onde estávamos, uma imensa escuridão nos separava da lâmpada que iluminava a entrada do Clube do Além. Agora entendia por que ele tinha esse nome, o lugar era mesmo sombrio. Ritinha e Ravier entenderam que era hora de se afastarem. Chegara o momento de Kelly e eu namorarmos. Mas antes eles se comprometeram a ficar nas redondezas para se certificar mesmo que a mãe de Kelly não iria aparecer. Tão dedicados! Naquela hora desejei muito ser Ravier e representar o seu papel de cupido, ao invés do flechado. Se inveja matasse, eu teria tido um ataque fulminante ali.
           Assim que eles se foram, Kelly e eu nos olhamos, sorrimos meio acanhados, e não me recordo de quem foi a iniciativa, mas demos as mãos e mergulhamos na escuridão. Enquanto fazíamos a travessia, permanecemos em silêncio, como dois cegos a caminho de um precipício. As mãos paralisadas, não sei se por medo de algum marginal sair do nada e nos esquartejar ou por medo do que poderia vir ao chegar ao nosso destino.
            Quando a luz voltou a nos iluminar já estávamos no clube. O deserto à nossa volta parecia nos ilhar. Não havia escapatória. O encontro enfim iria se concretizar. Ali parados olhando um para o outro, não sabia o que fazer. Senti pânico, quis voltar pra casa, não queria mais brincar daquilo. Kelly parecia também não saber o que fazer ou esperava alguma reação minha. Mas a reação que veio não foi minha. De súbito, a luz do clube, a única luz que nos distinguia naquela escuridão se apagou.
              - Não se preocupe, a luz daqui se apaga às vezes.
              - Você já sabia disso?
            É, ela sabia! E com isso veio se aproximando de mim. Mas naquele escuro, num clube chamado Além e com uma luz que tinha vontade própria, definitivamente eu não iria conseguir focar em namoro.
              - É melhor a gente esperar a luz voltar – sugeri.
           Enquanto aguardávamos, puxei conversa sobre a peça que a catequista iria montar para a festa do padroeiro. Kelly sugeriu que eu participasse. Mas eu lhe disse que não teria coragem de encarar toda a multidão do patamar da igreja. Rimos. E em meio a esse papo saudável a luz do clube retorna. Era hora. Kelly se aproximava de mim enquanto eu me afastava aos poucos até a parede me deter. É, vamos acabar logo com isso! O beijo estava prestes a sair quando ouvi um barulho estranho na mata.
              - O que foi isso? – perguntei.
              - Algum bicho.
         Ficamos olhando curiosos para o matagal. Como nada mais aconteceu, voltamos ao ponto em que paramos. E de repente outro barulho. Agora olhamos mais atentos. Conseguia sentir minha respiração enquanto meus olhos farejavam a origem daquele ruído na mata. E de novo o barulho, agora bem mais longo. Num rompante, saímos correndo e gritando desembestados sem olhar pra trás.
           Só conseguimos parar quando Ritinha se aproximou na bicicleta preocupada com os gritos. Difícil mesmo foi tentar entender o que acontecia. Não sei quem estava mais apavorado. E naquela bagunça, uma risada conhecida. Ravier saíra “se mijando” de rir de dentro da mata. Era ele? Como ele pôde fazer aquilo? Eu realmente fiquei com medo. E ele ali rindo da nossa situação, aquela risada tão cúmplice, tão companheira, tão gostosa, que eu conhecia profundamente. Acabei esquecendo o susto e me divertindo junto. Quem não parecia nada feliz era Kelly. Oh, ela! Vamos encerrar essa tortura de uma vez por todas, né? Saímos daquela escuridão e encontramos o local do crime atrás de um caminhão F4000. Ali ela me envolveu e mergulhou seus lábios nos meus. Argh! Que molhadeiro mais nojento!
             Cheguei em casa ainda atordoado com o novo homem que acabara de nascer em mim. Ainda comi umas sobrinhas de pipoca que encontrei na tigela. Minha mãe me encheu de perguntas. Agora era real, seu menino tinha mesmo ido se encontrar com uma menina mais velha. – “Estão namorando?” Entre suas advertências, não deveria beijá-la mais na boca, não era apropriado. Não entendo como poderia namorar alguém sem fazer isso. Mas mesmo assim, o namoro durou ainda uns dois meses, só com beijinho no rosto, e nunca na frente de alguém. Até que eu decidi terminar do mesmo jeito que comecei, inesperadamente! A única recordação boa que guardei daquele encontro foi mesmo o susto que Ravier nos deu. Sem querer, ele me livrou de uma daquelas tentativas traumáticas de Kelly, e ainda conseguiu levar diversão àquilo tudo. Na verdade, teria preferido mesmo passar a noite inteira discutindo os Cavaleiros do Zodíaco com ele. Adorava sua companhia. Com Ravier sentia que meu mundo poderia perder as cores, que ele arranjaria uma maneira de colorir. Tamanha satisfação, restava apenas entender: por quê?

17 comentários:

  1. "Era ele? Como ele pôde fazer aquilo? Eu realmente fiquei com medo."? sério? vc ficou com medo? ou vc inventou q estava com medo pra escapar daquela situação? e mentiu tão bem pra vc mesmo q realmente achou q estava com medo?

    assim e essa pergunta de pq vc se sentia melhor com o Ravier é só retórica né?

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    1. Não deixa de ser uma pergunta interessante.
      Poderia sim ter fantasiado o medo para me forçar a sair daquela situação.
      Mas eu realmente fiquei com medo.
      Foi assustador se imaginar ali sozinho com Kelly e saber que alguma coisa dentro daquele mato escuro se aproximava de nós, acho q cheguei a pensar q poderia até ser um ET. rsrs

      Quanto à pergunta final, é claro que eu sei a resposta, mas na época não posso garantir que compreendia completamente aquilo. A fichinha caiu um pouquinho depois.

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  2. Olha, adorei ler sua história! Uma delícia de texto.

    Gostei, especialmente disso:

    1) "como dois cegos a caminho de um precipício."

    Me senti assim também, muitas vezes, e seu texto me trouxe de volta essas sensações.

    2) "aquela risada tão cúmplice, tão companheira, tão gostosa, que eu conhecia profundamente."

    Ah, quantas vezes... uma cócega na barriga nessas horas...

    3) Com Ravier sentia que meu mundo poderia perder as cores, que ele arranjaria uma maneira de colorir. Tamanha satisfação, restava apenas entender: por quê?

    Quem pergunta, claro, é o menino. Imagino que naquela época nem tivesse consciência da primeira parte da frase... ou tinha?

    Enfim, muito gostoso ler. Continue!

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    1. Alex, provavelmente não tinha consciência da frase no sentido literal dela, mas metaforizada em sensações posso dizer que era aquilo mesmo que sentia.
      Talvez se fôssemos educados desde crianças a entender e aceitar que a homossexualidade é algo tão natural quando a heterossexualidade, eu já começaria a perceber que pendia pro primeiro e que não via Ravier apenas como amigo.
      Infelizmente ainda não é assim.
      Mas tenho esperança de um dia ser.

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  3. O caminho é mesmo longo para muitos de nós. Não fique ansioso nem agoniado com isso. Vá se gostando, se aceitando. É um processo diferente pra cada um.
    Vc escrever assim sobre o que sentia, poder compartilhar isso conosco, imagino, já vai ajudando...

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  4. Caraca, Clube do Além?! E eu que havia achava que tinha causos para contar kkk

    Muito legal poder voltar arevistar essas memórias...

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  5. Delicia de blog, vou passar mais por aqui.

    Mato? i like!

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  6. Clube do Além?Nome de se arrepiar.
    Teu post é super gostosinho de ler.
    Abraços,menino.

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  7. Olá, então Clube do Além ficou algo meio assombroso não? haha

    Abraços, passo mais aqui.

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  8. Clube do Além foi al-go! Curti a narrativa e a forma da tua escrita! Como já disseram: ficou "gostoso" de ler! Hugz, man!

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  9. Clube do Além. Amei hahaha

    As famosas perguntas. Acho que todos nós já nos fizemos elas em algum momento. No meu caso, foi um repetente que sentava na minha frente na aula, era tão tenso que eu vivia com a mochila no colo...

    Beijos!

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  10. Os elogios acima são merecidos. Quanto à história, confesso que a aflição bateu quando chegou a hora do caminhão, o tal F43210.
    Pensei: gente, essa menina não desiste?
    Aí, veio o Ravier.... A acho q deve ser a melhor parte.
    Ficaremos aguardando o Ravier.
    Abraços.

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  11. Muito bacana... Vc faz a gente sentir a história. Mesmo!

    abraços!!

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  12. O que passava pela sua cabeca ao 11 anos ao saber que estava prestes a beijar uma mulher? Vc ja entendia q nao sentia atracao por mulheres ou estava so preocupado em dar o primeiro beijo?

    Estando apenas preocupado em dar o primeiro beijo, por algum momento pensou em faze-lo com um homem?

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  13. Bom questionamento, Jardineiro!
    Eu ainda não entendia que não gostava de mulher. É uma coisa meio louca.
    Eu não sentia vontade de ficar com ela, mas queria viver aquele ritual da idade, de começar a namorar e tudo o mais.
    No dia eu estava mesmo preocupado com o beijo, e nunca passou pela minha cabeça fazê-lo com homem, pq eu me via como hétero, assim tinha sido criado, e apesar de alguns indícios, a ficha não tinha caído.

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